Afrodescendentes X Afro-convenientes


É possível alguém dizer: “Sou branca, mas sou afrodescendente!”? Foi o que eu ouvi de uma professora do ensino da rede pública,  que se identifica, pensa, age, vive como branca, sabe tudo sobre seus parentes europeus, dos quais se orgulha e, ainda sim,  me saiu com esta.

E de onde surgiu esta palavra? A  partir da Conferência de Durban, da ONU a palavra AFRODESCENDENTE veio para substituir o termo negro (aplicável apenas aos descendentes de africanos seqüestrados, traficados e posteriormente escravizados na diáspora, independente do fenótipo mais claro ou ”original”).

Se, por um lado, foi uma vitória  unificar as diversas terminações utilizadas para denominar o negro, por outro lado no Brasil, um país miscigenado , no qual o Movimento Negro teve uma atuação de 30 anos de conscientização para que a maior parte se declarasse negra e se incluísse na luta pelas ações afirmativas, de outro lado surgiram os afroconvenientes.

Em outros países, qualquer descendente de negro, miscigenado ou não, tonalidade de pele mais clara ou mais escura, é considerado  negro, focalizando a etnia na genética. Já a cultura brasileira materializou a questão racial focada na aparência. Desta maneira, um filho de negro com branco que nascesse mais claro, com todos os traços europeus, se pensava, se comportava, se identificava como branco e circulava entre os brancos se sentindo seus iguais e entre os  negros como próximos, aliados.

Afro-convenientes

Após esta luta para que todos se auto-afirmem como negros e termos uma série de conquistas ainda que iniciais na área da consciência, ainda resta muito nas questões materiais e econômicas e é aí que entram os afroconvenientes.

O  sofrimento histórico acumulado trouxe alguns comportamentos e questionamentos típicos dos negros que buscam sua identidade, sua afirmação na busca dos direitos em todos os sentidos da vida e na busca do reconhecimento de seu valor em todos os campos . E por conta disso, procuram discutir entre negros as questões raciais para se auto-reconhecerem  e aprender a se defenderem das armadilhas conscienciais utilizadas pelos colonizadores no processo de embranquecimento. Assim, reafirmam sua negritude.

O que me deixa preocupada é essa questão da miscigenação ter feito os mais clarinhos se sentirem brancos, os que estão no meio termo não serem aceitos por ninguém e somente os mais escuros se sentirem negros de fato. Desta forma, os  miscgenados escuros e negros facilmente se consideram afrodescendentes e também assim são aceitos na sociedade.

Já os clarinhos, quando possuem cabelos lisos, nariz afilado e toda a identificação com uma parte da origem européia, se tornam afroconvenientes. Passam uma vida inteira afirmando sua branquitude, se comportando, se pensando e sendo aceito como brancos. No entanto, em algum momento da vida e por conveniências das mais diversas (solidão, conquistas de títulos ou bonés materiais, decepções das mais diversas) passam a se lembrar da parte negra de sua família e a exaltá-la, mas ainda com um ranço de cultura colonialista.

Por este motivo, pude ouvir esta frase hoje “sou branca, mas sou afrodescendente”, de uma boa pessoa que em toda sua vida se pensou, agiu, amou, trabalho, estudou e viveu branca, tendo toda uma reação com o mundo e com a vida de forma branca, colonialista, mesmo que sendo uma boa pessoa. Só que esta branquitude, faz com que essas pessoas se pensem no direito de estar em todos os lugares que queiram, se apropriem de tudo o que queiram por terem um avô  ou algum tattaravó negro e passam a se apropriar de alguns valores, mas não para seu crescimento consciencial, mas pelas conveniências que, em alguma altura da vida, tenham.

Por isso, nesta luta pelas conquistas  de direitos e independência do negro deva ser sempre conduzida por quem se sinta realmente negro consciencialmente, ou seja, afrodescendente com consciência negra (retintos e mestiços escuros e claros, conscientes e respeitadores da história e da luta do povo negro), pois os afrodescendentes que  acham que podem passar por brancos e, muitas vezes verbalizam isso, se colocam como afroconvenientes (negros entre os negros e brancos entre os brancos) e podem, no máximo ser aliados, mas nunca condutores de uma realidade da qual não sentem o sofrimento, não participam diretamente e que visualizam de fora. E estes têm que compreender e reconhecer  que é o negro – consciencialmente falando – que tem que conduzir a sua luta, podem ajudar, ser amigos sempre, mas não podem falar pela voz que é de direito ser do negro!

9 comentários

  1. Sandrah, tudo bem? É a Ana Maria, estudamos juntas na Metodista, lembra? Não? Pra refrescar a memória: sou de Mato Grosso do Sul e cheguei a ir em sua casa, na zona leste, na época da faculdade. Nestas buscas pela internet, procurando o Roberto Mônico, acabei te encontrando. Fiquei muito feliz em te ver produzindo, super linda e engajada, como sempre. Procurei a revista mas não encontrei o site. Estou no meu estado, voltei em 99, depois que minha primeira filha nasceu. Hoje tenho ela (14 anos) e dois guris (12 e 11) e fazemos um monte de coisa aqui, pra conseguir sobreviver com dignidade. Estive em São Paulo semana passada, voltei terça. Se tivesse me lembrado antes, teria procurado aí. Vi o Marcelinho Viana, aquele de Santo André. E vc, tem contato com o povo? Me passa. Vamos nos falar. Saudades. Bj. Ana Maria Barbosa

  2. Oi, minha mãe é negra e toda a família dela também. Mas meu pai é branco de olhos claros e toda a família dele também. Nasci branca, de cabelos lisos, mas eu não sei se devo me considerar ou não afro-descendente. E, se eu disser que sou ao preencher as questões de um vestibular, eles têm o direito de cancelar minha vaga? Eu não sei ao certo se o “afro-descendente” designa somente as pessoas negras ou quem de fato tem um parente próximo que é/foi.

    • Afrodescendente,foi instituído pela ONU como sinônimo de Negro (aquele que tem a pele preta) porque em diversos locais havia uma divergência quanto ao uso da palavra preto ou negro, em virtude dos sofrimentos históricos dos afrodescendentes decorrentes do processo escravocrata.
      Quem fala muito sobre a questão de assumir a descendência africana ser um ato político é Clóvis Moura em muitos de seus livros, uma vez que, ao assumir sua negritude, voce tem que assumir todo o processo histórico decorrente do sofrimento causado pela escravidão e tomar partido e deixar de ser imparcial.
      É uma tomada de decisão e consciência que não significa que, necessariamente, os órgãos públicos possam encaixá-la nos sistemas de cotas, uma vez que eles são baseados na cor aparente, já que no Brasil, o racismo se baseia na aparência, ou seja, quanto mais preto/negro/afro mais sofrido e discriminado.
      É complexo para nós brasileiros. Eu também sou negra, descendente de africanos e indígenas, meus cabelos não são carapinha, são encaracolados, tenho irmãos de cabelos lisos e todos têm certeza de que são afroindigenadescendentes. Só que somos descendentes de duas parcelas que foram duramente oprimidas.
      No Brasil, assumir a negritude e o lado que luta pela igualdade racial, é um ato político-ideológico de lutar contra a opressão e as estratégias de dominação.

      • Meu sobrinho também é como voce e, já buscou bolsa, mas não pelas cotas porque a pela branca não permite e ele foi rejeitado, pode ser sim aceito pela cota social, por estudar em escola pública, mas não por afrodescendência, já que pode ser aceito como branca.

  3. Bom dia! Acho esse tema interessantíssimo. Sou pardo. Meu pai é negro e minha mãe é branca e nasci com aparência de pardo mesmo, o típico brasileiro. Cabelo liso, alto (quase 190 cm), feições tipicamente brasileiras. Não sou rico, mas sou de uma família de batalhadores e meus pais, que passaram fome quando criança, hoje são profissionais liberais de sucesso. Estudei em escola particular a vida toda, fiz faculdade. Nunca sofri preconceito.

    Lendo o seu texto, comecei a pensar na vida. Antigamente, eu não me importava com essas questões da pauta do negro: a cota, o racismo, as barreiras sociais, o estigma, a truculência policial, a dívida social entre outros.

    O tempo passou e eu passei a me importar com isso. Não sei exatamente em que momento isso se deu, de eu me identificar como negro. Lembro que a minha primeira viagem a Recife mexeu muito comigo.

    Tenho metade de sangue italiano e metade de sangue africano (nordestino, provavelmente com alguma coisa de índio, pois meu avô do agreste tinha cabelo liso).

    Comecei a me sentir como se essa identidade fosse mais adequada à minha realidade. Se bem que eu sei que existem uns italianos sulistas que têm a pele mais morena (mouros?) e talvez se eu tivesse parentes italianos mais próximos, eu tivesse uma relação maior com eles.

    Enfim, hoje eu me sinto negro. E tenho orgulho de ter sangue nordestino. Na verdade, até gostaria de morar lá. Eu me senti em casa em Recife, coisa que não me senti em nenhuma outra cidade. Agora as minhas perguntas:

    1) Se eu tenho traços negros manifestados em meu fenótipo, sou necessariamente negro? Ou além de ter os traços manifestados, preciso estar consciente dessa decisão?

    2) No seu texto, você faz referência a certos conceitos que não consigo apreender. “(…) de uma boa pessoa que em toda sua vida se pensou, agiu, amou, trabalho, estudou e viveu branca, tendo toda uma reação com o mundo e com a vida de forma branca, colonialista, mesmo que sendo uma boa pessoa (…)”. O que significa amar, trabalhar e estudar como um negro? A negritude tem de se expressar em todas as esferas da existência humana? O fato de eu ter vivido grande parte da minha existência com pessoas brancas e só ter criado uma consciência com relação a questão do negro só agora, com quase trinta anos, faz com que eu seja menos negro que alguém que nasceu em uma comunidade e desde cedo aprendeu sobre as questões sociais, é politizado, etc?

    3) Como eu nunca sofri nada por ser negro, tenho uma certa dificuldade de empatia, às vezes, com a questão racial. Às vezes leio notícias sobre os jovens negros sendo dizimados pelas forças policiais e sinto muita tristeza. E aquilo me parece um universo tão distante do meu. Nunca fui desrespeitado por qualquer agente de estado. Às vezes me pergunto se não sou aquele negro que tem de se politizar para levar a questão racial onde ela nunca seria debatida. Nos círculos sociais em que as pessoas não têm a menor consciência da luta do povo preto. Outro dia estava tentando convencer alguns parentes que as cotas precisam ser raciais, não meramente sociais. Você conhece alguém nessa situação? Às vezes me acho esquisito por conta disso, como se por algum motivo a falta de sofrimento fosse algo que me impedisse de manifestar minha identidade negra em toda sua plenitude… Enfim, obrigado pelo texto e ficarei muito grato se puder colaborar nessa minha jornada rumo à descoberta e aceitação de minha identidade cultural.

    • Interessante suas questões, Aníbal!

      Quando fiz este texto, foi em referência a afrobrasileiros que são filhos de brancos com negros, mas que nascem brancos, com cabelos lisos, aparência branca e que em toda sua vida se colocam como brancos e que são vistos na sociedade como brancos. Só que há momentos em que se relacionam com negros e, por perceberem que há uma possibilidade de terem algum ganho, se colocam como negros ou afrodescendentes, por pura conveniência.
      Este texto não se refere a voce, que assim como eu e muitos outros negros foram descobrindo sua própria história, tomando consciência de todo seu sofrimento e também aprendendo sobre questões raciais e se posicionando como negro. Isto é muito diferente. No seu caso, é uma tomada de consciência que acontece com todos nós, afrobrasileiros (metade africano e a outra metade misturada), mas que resolvemos assumir nossa negritude, sem esquecer também os demais ascendentes.

      Entendeu?
      Afroconveniente, pode ser visto como branco quando está cercado de brancos e, invariavelmente assume mais sua eurodescendência por ter aparência branca e ser aceito como tal e se comportar como tal. Somente quando vê alguma possibilidade de levar vantagem, se lembra que tem ascendência africana, mas somente quando está entre os negros, porque quando está entre os brancos, pesa mais a branquitude e o esquecimento da africanidade. Este sim é o afroconveniente.

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